Nas escolas regulares, é comum ouvirem-se gritos por parte dos
professores, usados maioritariamente para o controlo da disciplina da sua
turma. Além disso, utiliza-se como recurso, para ajudar a manter a ordem,
Prémios e Castigos, que, na verdade, só promovem o afastamento emocional e
social das crianças umas das outras (e do seu professor) e provocam uma
sensação de incapacidade e baixa auto-estima daqueles que nunca conseguem lá
chegar, no caso dos Prémios, e sentimentos de inferioridade e baixa de
auto-estima também no caso dos que são castigados.
Como se processa, então, em Montessori, o controlo da ordem e do
caos que pode surgir quando se lida com crianças?
Uma definição de Liberdade poderia ser “o
direito de agir segundo o seu livre arbítrio, de acordo com a própria
vontade, desde que não prejudique outra pessoa” (in Dicionário). Uma definição
mais de acordo com Montessori, seria “A faculdade do ser humano decidir e levar
a cabo ou não determinada ação segundo a sua inteligência e vontade. A
liberdade é a faculdade que permite também aos outros atuar, já que está regida
pela Justiça” (in Apontamentos). Atuar em Liberdade implica, naturalmente, saber
o que é bom e importante para nós, o nosso caminho e missão nesta Terra, tendo
a força de vontade, a autodisciplina e a independência necessárias para atuar
de forma a conseguir alcançar aquilo a que nos propomos, tornando-nos, ao mesmo
tempo, responsáveis pelas consequências que possam advir dessa ação.
Para
podermos ser livres, temos de desenvolver a vontade, a autodisciplina e a
independência, e são exatamente essas características do carácter que se podem
formar num Ambiente Montessori. Neste ambiente, as crianças têm liberdade de
movimento por todo o espaço (seja interior ou exterior); de expressão (verbal,
não-verbal, artística…), de seguir os seus interesses, de eleger o que querem
fazer de todas as atividades que já lhe foram apresentadas, de trabalhar todo o
tempo que queiram, de não trabalhar, de falar e comunicar-se com os outros, de
observar os outros a trabalhar, de comer e beber sempre que sintam vontade, de
ir à casa-de-banho sem necessitar de pedir autorização a um adulto, de decidir
ver ou não a apresentação de algum material, de ensinar ou não os outros, de
ajudar ou não os outros. Neste ambiente, as crianças possuem estas várias
liberdades que vão de encontro com as suas necessidades e ao mesmo tempo com as
necessidades dos outros, respeitando os ritmos e curiosidades/vontades naturais
de cada criança, permitindo uma maior consciência e construção de uma auto e
hetero-noção saudáveis e ao mesmo tempo úteis, promovendo assim a concentração,
a segurança, a paciência e a coesão social do grupo que cresce e se constrói
nesse ambiente.
No
entanto, para haver uma Liberdade com respeito, tem de haver também alguns
limites, sendo por isso que nas sociedades em geral há sempre leis que servem
para proteger e defender os direitos e deveres de todos os seus cidadãos em
prol da igualdade e da coesão social, assim como ajudar a dar forma à
integridade do indivíduo. Os limites, como as leis, ajudam a que todos possam
agir com liberdade e independência sem, no entanto, prejudicarem o seu próximo
ou o seu ambiente.
Em Montessori, pode-se falar de 4 limites básicos que permitem o bom
funcionamento dos Ambientes Montessori e a autodisciplina das crianças que nele
se constroem. Assim, estes limites contemplam: 1 – O Interesse Coletivo – a
criança não poderá fazer nada que a prejudique a ela ou aos outros; 2 – O Conhecimento
Precede a Ação – a criança utilizará só os materiais que já lhe foram
apresentados, e se quiser conhecer um material, deve esperar até que alguém lho
apresente, no tempo adequado; 3 – O Uso do Material – este deve ser utilizado
de forma apropriada, para a função que lhe é especifica (se a criança desejar
auto-expressar a sua fantasia, pode sempre ser dirigida ou ir para a área de
Arte e utilizar o barro, a pintura, a dança… como forma de libertar essa
expressão); 4 – O Material é Limitado a 1 exemplar – só existe no ambiente um
exemplar de cada material, pelo que a criança deve esperar no caso de alguém
estar já a usá-lo, ou então pode juntar-se à outra criança, caso esta aceite
usar o material em conjunto.
Ser livre implica ainda conhecer os limites do lugar onde o ser humano se
encontra, compreendendo porque existem e para que servem, implica o
desenvolvimento da vontade para controlar-se e obedecer-se a si mesmo, e
implica a capacidade de movimento em qualquer lugar. Liberdade é atividade e a
Disciplina provém dela.
A Disciplina de um
Ambiente Montessori provém da liberdade que se dá à criança de trabalhar
seguindo a sua ordem interna, que por sua vez se torna ordem exterior, de
momentos que demonstram calma e autodisciplina, “…uma espécie de paz ativa, de
obediência e de amor…”, onde a criança normalizada “…continuará a acumular
trabalho terminado do qual os outros nada sabem, obedecendo simplesmente à
necessidade de produzir e aperfeiçoar os frutos de seu trabalho. O que lhe
interessa é terminar o seu trabalho, não se importa com o fato de ele poder ser
admirado nem deseja amontoá-lo como propriedade sua: o nobre instinto que o
move está muito longe do orgulho e da avareza.”[1]
Para chegar a este nível de autodisciplina e obediência, a criança passa
por 3 fases de obediência. É importante conhecer estas fases para que se saiba
lidar da forma mais correta e respeitosa com a criança, de acordo com o seu
nível de desenvolvimento. Para obedecer, a criança necessita primeiro de se
sentir segura e aceite por completo, no seu todo.
O Primeiro Nível de Obediência
corresponde ao primeiro período da vida, em que as ações da criança obedecem ao
“horme” (impulso vital). Nesta fase, a criança, que terá entre 0 e 2 anos de
idade, obedece ocasionalmente. Pode acontecer a criança obedecer uma vez e não
o fazer na vez seguinte. Tal comportamento é normal, uma vez que depende do
grau de desenvolvimento das suas capacidades. “…se a criança ainda não é
senhora de suas ações, se não consegue obedecer à sua própria vontade, muito
menos conseguirá obedecer a uma outra pessoa.”[2] Esta condição pode ser observada por
qualquer pai ou adulto, sendo normalmente aceite socialmente.
O Segundo Nível de Obediência, que normalmente se pode observar o seu
iniciar por volta dos 2 anos e meio, corresponde a uma fase em que a criança pode
obedecer sempre, pois as suas habilidades estão bem consolidadas e podem ser
dirigidas pela sua vontade própria, mas também pela vontade de uma outra
pessoa. No entanto, ainda assim, pode haver crianças que ainda não o façam,
dependendo do grau seu desenvolvimento pessoal. Este é o grau desejado pelos
professores de escolas tradicionais, sem mais evoluções.
No entanto, Maria
Montessori fala-nos de um Terceiro Nível de Obediência, onde a criança
ultrapassa a relação com a habilidade adquirida, dirigindo então a sua
obediência para uma personalidade da qual já sente a superioridade, amor e
carinho. Para Maria Montessori, a criança poderia
pensar algo do género de: “Esta pessoa que está tão acima de mim, pode penetrar
na minha inteligência com um poder especial todo dela e me fazer tão grande
como ela. Age dentro de mim.”[3] Este sentimento parece proporcionar à
criança muita alegria, e a criança torna-se impaciente e ansiosa para obedecer
a esta pessoa especial, pois percebe que a mesma pode elevá-la. Daí que uma
Guia Montessori tem de ter muito cuidado e responsabilidade em tudo o que diz,
pois uma criança nesta fase obedecer-lhe-á quase cegamente. A diferença entre
um líder e um tirano está exatamente aí: um líder sente a responsabilidade de
liderar estes seres que o seguem com cuidado, justiça e correção, mas um tirano
aproveita-se deste seguir e destrói o ser e a confiança nele depositada.
No Método Montessori, trabalham-se os dois lados que levam ao exercício
da força de vontade, da autodisciplina e da liberdade/independência da criança:
de um lado a vontade de escolher e trabalhar livremente, e do outro, a inibição
dos impulsos que não correspondem ao respeito por si, pelos outros e pelo
Ambiente.
CONCLUSÃO:
As características do Ambiente
Montessori, do Material Montessori e do Adulto Preparado Montessori, aliados às
observações científicas realizadas por Maria Montessori e seus/suas Guias ao
longo de quase um século sobre o desenvolvimento da criança, alicerçam a ideia
de que a Liberdade e Disciplina estão interligadíssimas, num contexto de
respeito pela criança. Uma e outra são duas faces da mesma moeda, que andam de
mãos dadas e permitem uma autorregulação da criança, não sendo, para tal,
necessário qualquer tipo de Elogios, Prémios ou Castigos, assim como gritos ou
outras formas mais retrógadas e desgastantes usadas durante séculos pela figura
do professor para controlar um grupo de crianças.
Num ambiente Montessori, as crianças
são livres e por isso disciplinadas e responsáveis, sabendo estar, intuitivamente
e por coesão social, umas com as outras, sabendo resolver sozinhas os (poucos)
conflitos que possam surgir e ficando, acima de tudo, felizes e satisfeitas por
poder obedecer à sua vontade pessoal e também a um adulto de referência. A sua
alegria contempla ainda o poderem trabalhar em conjunto e/ou poder apreciarou
ajudar o trabalho dos outros colegas. Neste ambiente crescem felizes, calmas,
autorreguladas, livres e saudáveis.
Por
fim, acrescento apenas uma reflexão muito pertinente realizada por Maria
Montessori, no seu livro “Educar para un nuevo mundo”, em 1946, de modo a
provocar os professores que ainda hoje utilizam métodos rudimentares de
controlo da disciplina: “Como podemos falar de Democracia e Liberdade se desde
a mais terna infância já estamos formatando as crianças para que suportem uma
tirania e obedeçam às ordens de um ditador? Como podemos pretender viver em
Democracia, se criámos escravos? A verdadeira liberdade começa quando começa a
vida, não na idade adulta. Há gente a quem se despojou as suas potencialidades,
a quem se tornou míope, a quem se tirou as forças mediante um esgotamento
mental, a quem se deixou com o corpo deformado, a quem fizeram em pedaços a
vontade os maiores que lhes diziam “Não se fará nada do que tu queres, prevalecerão
os meus desejos!”. Como é possível pretender que, ao terminar a escola, esta
gente aceite e exerça os direitos da liberdade?”[4]
[1]
“A Mente Absorvente”, p. 295 e
296
[2]
“Mente Absorvente”, p. 278
[3]
“Mente Absorvente”, p. 280
[4]
Tradução do espanhol realizada para este trabalho.
BIBLIOGRAFIA:
•
MONTESSORI,
M. Educar para uns nuevo mundo. Montessori-Pierson Publishing Company,
Amsterdão, Países Baixos. 2016 – obra originalmente publicada por Maria
Montessori em 1946.
•
MONTESSORI,
M. El método de la Pedagogia científica – Aplicado a la educación de la
infancia em las “Case dei Bambini. Editorial Biblioteca Nueva, S. L.,
Madrid. 2015 – obra originalmente publicada por Maria Montessori em 1909.
•
MONTESSORI,
M. Mente Absorvente Editora Nórdica, S. Paulo, Brasil, 1987 – obra
originalmente publicada por Maria Montessori na Índia em 1949.
•
Apontamentos
do Curso de Assistentes Montessori 3 – 6 anos no Porto, 2017, pela formadora
Guadalupe Borbolla, Guia AMI.
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